"Meu caminho é por mim fora."

17/02/2013

Dentro dos Meus Olhos



  A minha mãe aparecia e desaparecia. A casa era um labirinto de sombras. O quintal suportava o tempo dos pessegueiros. As ruas da vila aproveitavam o descanso. Era um serão do início de Setembro, um silêncio morno, a ideia de um lago. Era a véspera de eu fazer doze anos, estava sentado no último degrau da porta do quintal. As fitas caíam-me pelos ombros, cabelos compridos de plástico colorido, tocavam-me as costas.   Eu estava em tronco nu, ombros finos. Se me encontrasse, entrava no mundo da casa: a minha mãe a fazer tarefas secretas, a mover-se entre as coisas, debaixo de luzes apagadas, a casa fresca e escura, ângulos negros desenhados no lugar onde sabíamos estarem os móveis. Se me inclinasse: o quintal. Depois dos muros, as ruas da vila. O quintal não suportava mesmo o tempo nos ramos dos pessegueiros, mas parecia. A noite tinha muitas estrelas. Hoje, não me recordo do que tinha feito nesse dia. Os meus amigos tinham nomes. Nesse tempo, eu e os meus amigos passávamos tardes inteiras juntos. É muito provável que os tenha encontrado nesse dia. Se conversámos, falamos de Agosto que ainda trazia na cor da pele, ou falámos da escola, que voltava a ser possível. Embora me faltem pormenores, aquilo que sei é que,  pela memória, sou capaz de regressar àquele serão, 1986, em que estava sentado no último degrau da porta do quintal. O meu pai tinha adormecido havia muito tempo, o seu sono existia dentro de um dos quartos da casa.

  Hoje eu sei quanta serenidade é necessária para que um pai adormeça antes do seu filho. Aqui, onde estou, sei isso. São paredes à minha volta, a seguir está Fevereiro, o frio. Para além do som das teclas do computador, o ponteiro dos segundos de dois relógios , alternados, um aqui outro ali. Depois das paredes, às vezes, um autocarro, ou silêncio. Este lugar, este tempo, sob o ponto de vista de quem está rodeado de palavras, a escrever, como é o caso, pode ser comparado a estar sentado no último degrau da porta do quintal, na véspera de fazer doze anos. Como nesse dia, se me encostar ou inclinar, entro em mundos diferentes. Em 1986, eu estava numa situação que pode ser comparada a estar aqui, agora, (...)  e isso é extraordinário, conforme se verá.
  Uma razão forte para essa admiração é que, aqui, nesta penumbra, paredes, ouço agora uma ambulância, dois relógios, posso imaginar todo o futuro. Essa é uma possibilidade incontestável. Não sei distinguir o possível do impossível, mas sou capaz de imaginá-la a ambos. E talvez a verdade esteja espalhada ou escondida em alguma parte desse infinito. Se isso não é extraordinário, desisto. Impressionante também é o facto de que quase tudo o que aqui disse sobre mim, pode igualmente ser dito sobre ti. Para este efeito, os meus olhos são os teus. Também tu estás num hoje em que podes recordar e em que podes imaginar. Sim, tu. Se não conheces a véspera de fazeres doze anos, com a sombra da tua mãe, etc., é porque conheces outra ocasião que apenas tu saberás e que poderás lembrar hoje ou, mais tarde, num dia em que estejas assim, entre memórias e possibilidades. O tempo não passa depressa, mas passa.  O quintal nunca suportou o seu peso nos ramos dos pessegueiros. Apenas parecia muito nitidamente que era assim. Às vezes, ainda parece. Existe a precisão geométrica e os registos; no entanto, depois do amor, provou-se que nada tem que ficar como está ou de ser como é.
  Hoje, tenho estas paredes à minha volta e a suspeita de que, entre o que sei está tanto daquilo que serei. O que ainda não está aqui, iniciou já o seu caminho, dirige-se ao ponto onde me encontrará. É assim contigo também. É necessária paz para aceitar esta certeza simples, é necessária uma mistura de ponderação e entusiasmo para sermos capazes de desenhá-la pelos nossos contornos, tanto quanto possível, claro. Isto que parece banal são os desafios que a vida nos coloca. Aqui, neste momento, somos uma espécie de monstro num jogo de computador, carregamos o passado e o futuro, temos uma forma assustadora. E, no entanto, para lá da abstracção, este é um lugar normal, aquecido, e, hoje, aqui, é dia 6 de Fevereiro de 2009, escrevo agora este texto e, às nove horas da noite, passam doze anos sobre o instante em que o meu filho mais velho nasceu. 


Luís Peixoto

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