A manhã levantou-se cinzenta nesse começo de Setembro, que prometia ser a continuação de Agosto, a gelar a carne e os ossos dos habitantes da região. A avó deixou-me só enquanto foi encontrar as amigas no café do fim do prédio e eu permaneci no quarto de janela aberta a deixar invadir-me pela sobriedade do dia. Era Setembro e estava frio, porém continuavamos com roupa de Verão, o estio que inda não tinha havido nesse ano. Recordo-me bem, porque foi ontem o dia que nasceu cinzento.
Nessas primeiras horas do dia cruzei-me com o pai no corredor, disse-me: "Sai da frente, cachopa!" e agora que penso nisso foi a única cousa que me disse durante todo o dia. À noite, enquanto eu e a mãe estavamos a arrumar a louça do jantar e o pai ficava quieto a fumar o seu cigarro à porta do terraço, entendi que cada um vivia na sua própria casa dentro da nossa casa comum. Passavamos uns pelos outros como sombras nas vias de acesso aos quartos, falavamos apenas quando necessário e conviviamos à mesa abafados pelos barulhos da televisão.
Nas tardes vagarosas a avó era frequentemente assaltada pelo bicho da memória e desenterrava, deitada na cama a ver a telenovela, o passado inglório da família, nesses intervalos de tempo havia espaço para os podres de cada elemento. Ela poderia ficar as tardes inteiras a contar novos episódios da história familiar, desde a morte de um às asneiras de outro, mas a sua parte predilecta era a de ter sido ela a criar-nos e a fazer de nós o que somos. Há em cada cousa nossa um "obrigado" que lhe devemos e ela faz questão de o ouvir. A avó é a beata da nossa casa, aproveita todos os momentos para ir à missa e pôr as rezas em dia, mas enquanto saímos da igreja mais leves ela traz o putefracto, no meio das suas doenças ela tem o coração corrompido e por isso desaba aos prantos nalguns Domingos à tarde. Nas suas histórias está tudo o que não quero saber, são os factos, as invenções e os mal entendidos que nos afastam para vivermos cada um por si dentro de um território de todos. O Passado mata-nos!
Há nas nossas paredes o rancor a escorrer, crescem ervas daninhas nos nossos corações juntamente com algumas rosas muito espinhosas. Mas pergunto-me como seria se um dia a avó não invocasse os fantasmas do passado, o pai não me mandasse simplesmente sair-lhe do caminho e a televisão não estivesse a falar mais alto do que nós. Era possível que os dias não fossem tão nublados e que deixassemos de viver os restos do passado.
A avó conta-me do tempo em que a mãe era jovem, imatura e não cuidava de nós, mas essas recordações que não tenho e que não são minhas não podem afrouxar o amor que lhe sinto, é mãe e é minha. Os irmãos são meus, o pai é meu, a avó também é minha, pertencem-me e amo-os, amo-os porque me pertencem, mas a uns com mais custo que a outros. No entanto, antes de serem meus cada um é de si e um por um se fecham na sua vida dentro do nosso mesmo lar. Somos família e estamos partidos. Somos as lembraças nossas ou que nos contaram e levamos os dias a falar alto ou a calar. Recordo-me bem, porque foi ontem e toda a minha vida.
Mas, porventura nesses crepúsculos matutinos o Sol consiga iluminar o nosso lar, afastar os ressentimentos e acabar com os dias enovoados que aumentam a escuridão.

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